Friday, August 6, 2010

Laboratório Madalena - Teatro das Oprimidas (Português)

Bárbara Santos e Alessandra Vannucci*

A idéia do Madalena germinava em nós há tempos. Uma na Itália, trabalhando numa companhia teatral formada por mulheres, pesquisava histórias de mulheres combatentes na segunda guerra mundial, mulheres escravas de suas frustrações no espelho de uma academia, mulheres santas e bruxas que acabaram protagonizando três textos teatrais entre 2005 e 2010. Além de organizar um festival sobre o corpo feminino em 2009. A outra, entre Brasil e África, coordenando o projeto Teatro do Oprimido de Ponto a Ponto, de qualificação e difusão do método teatral criado por Augusto Boal, via o tema da opressão contra a mulher repetir-se e multiplicar-se vertiginosamente nos espetáculos de Teatro-Fórum. Daí, foi motivada a escrever o musical Canção para Madalena. Esse foi o texto que gerou nossas primeiras trocas de impressões neste campo, já pelos idos de 2004.


O Prêmio de Interações Estéticas e Residências Artísticas em Pontos de Cultura (Ministério da Cultura – Funarte: Fundação Nacional de Artes) de 2009 viabilizou nosso re-encontro produtivo, iniciado em 1995, no programa de intercâmbio do Centro de Teatro do Oprimido e mantido, mesmo à distância, com trocas de experiências.

Nosso ponto de partida foi o corpo feminino, este que passou por mudanças radicais, permanecendo na coxia ao longo de séculos, protegido ou censurado pelo corpo masculino e que hoje parece protagonizar a ribalta da sociedade midiática e do nosso imaginário. Corpo despido, exibido, sensual ou trivial, reinventado, espremido e despedaçado nos outdoors, nas páginas das revistas, nas passarelas da moda e do samba. Corpo que se tornou o melhor veículo para venda de qualquer produto e no qual se trava o embate entre cultura (contemporânea e/ou ancestral) e direitos humanos fundamentais.

O programa que desenvolvemos teve como proposta a experimentação. Encaixamos idéias e exercícios de construção de cena e de personagem, tirados de nossos percursos, no teatro profissional como diretora e na pesquisa da Estética do Oprimido como Curinga**. Criamos um caminho em aberto, deixando coisas por descobrir, por isso “laboratório” e não “oficina”. A partir da pesquisa temática e de imagens, desenvolvemos dinâmicas que investigassem perguntas essenciais: quais modelos ancestrais ainda agem no “ser mulher” hoje? Quais contextos sociais condicionam o comportamento e o corpo desse ser mulher? Quais lugares ocupamos e quais queremos ocupar? Quais expectativas, quais sonhos? Quais alternativas?

Usamos Teatro-Jornal, Teatro-Imagem, Arco-íris do Desejo, Teatro-Fórum, Estética do Oprimido e diversas outras técnicas teatrais para estimular as participantes a reconhecerem e desvendarem suas opressões e, especialmente, analisarem suas posturas dentro delas. Em menos de uma semana, tempo de duração de cada laboratório, as Madalenas produzem declarações de identidade, poesias, obras de artes plástica individuais e coletivas, performances, cenas de Teatro-Fórum e eventos que abrem a discussão política e estética para a sociedade. Também realizamos o ritual das “mãos que contam”: as Madalenas pintam as mãos e usam como carimbo para assinar um tecido de 10 metros, onde nos unimos a todas as participantes. Os espetáculos: EVA, no Cariri; MADALENA, no Rio de Janeiro; MARIA – RITUAL DE PARIDEIRAS, na Guiné Bissau; A VOZ DE ROSA, em Moçambique.

O tema da violência doméstica e do machismo foi o centro, como preocupação justificada tanto pelas narrativas pessoais quanto pelas estatísticas. Mas as perguntas mais presentes não estavam relacionadas ao opressor, mas, sim, às oprimidas no sentido de investigar posturas, idéias e comportamentos que contribuem, ratificam e propagam a opressão. Não se tratou de psicologizar a opressão, mas de rasgar o véu do incompreensível para deixar revelar os mecanismos sociais de convencimento e condicionamento.

Madalena, espelho de ressonância e espaço de criação compartilhada em que cada mulher se reconhece um pouco em outra mulher, nos fez avançar numa vivência lúdica, poética, emocionante e intensa na qual estivemos realmente juntas. As descobertas foram fortes. A posse e a exploração do corpo feminino para a produção e a reprodução como momento histórico em que a sociedade capitalista e patriarcal, a nossa, se instala brutalmente. A culpa atribuída à mulher, desde a primeira Eva na Gênesis, na tradição judaico-cristã como arma com a qual ainda hoje somos intimidadas em nosso “poder ser” e limitadas no exercício de nossos direitos cotidianos. Os “policiais na cabeça” (nem sempre masculinos) que invadiram nossos cérebros tornando-se nossos mais insidiosos opressores, já que dispensam a ação violenta do antagonista: reprimimos-nos sozinhas. Quantas vezes renunciamos ao que queremos? Quantas vezes reproduzimos hábitos que não mais queremos?

O trabalho de laboratório nos permitiu modificar os percursos para seguirmos e investigarmos as descobertas. Na pesquisa das ancestrais, seguindo o caminho corporal da mãe para avó e desta até a ancestral mais distante. Num dos laboratórios, as participantes criaram corpos de mulheres abatidas, com gestos repetidos de trabalho, alento de canseira extrema, lamentos imemoriais. Mudamos de dia, hora, século. Continuaram trabalhando, no corpo imaginário das ancestrais como no próprio, ontem como hoje. Em outro, vivenciamos uma viagem intensa e emocionante no espaço sagrado da maternidade e na saudade dos corpos femininos que nos pariram e criaram fêmeas, transmitindo-nos também todas as amarras do gênero. Em outros, buscamos a permanência das nossas ancestrais em nossos próprios corpos, gestos, hábitos, influenciando nosso juízo e também no de nossas contemporâneas. Seguimos adiante, investigando os corpos dessas mulheres lembradas, conhecidas e/ou imaginadas, criando condições para que se encontrassem num espaço de confiança e de confidência do inconfessável, mesmo que apenas para o espelho imaginário.

Notamos que na memória das ancestrais foi comum aparecer muito trabalho, por um lado, e apatia, fragilidade, dependência e resignação por outro. Entretanto, nas experiências em que propusemos a vivência da mulher primitiva, apareceu força, dinâmica, independência, ousadia e aliança. O que teria feito essa imagem de fortaleza e independência se perder no imaginário feminino? Poderia estar relacionado à Genesis que descreve essa ousadia e desejo de saber como pecado universal e culpa feminina, cujo castigo é a caçada do paraíso? Estaria relacionado ao estabelecimento de um determinado modo de produção, agora dominante, em que a mulher é subalterna? Enfrentamos uma imagem de mulher esmagada pela culpa de ter ousado colher o fruto da árvore do bem e do mal, do conhecimento, contrariando a proibição de um deus.. macho.

Tentamos também nos deixar percorrer pelos lugares que percorremos: em Juazeiro do Norte, terra de romeiros, fomos à feira devocional perante a Igreja, cantando e dançando a nossa música, a Romaria das Madalenas para convidar o público. No Rio, improvisamos uma saída de “guerrilha urbana” em plena Lapa, armadas de batom vermelho e bom humor com que modificamos as imagens e escritas machistas que encontrávamos pelo caminho. Em Guiné-Bissau, participamos da cerimônia de “paridas” (mulheres-mães), experimentando a vivência das africanas com suas ancestrais.

Trabalhamos com mulheres: trabalhadoras domésticas, culturais, sociais, artistas do palco e da vida, fêmeas em busca de identidade e de visibilidade, dispostas a escrever uma nova história para si e para todas as mulheres. Brasileiras, italianas, argentinas, mexicanas, portuguesas, guinenses e moçambicanas que acreditam que um novo mundo é possível.

Parcerias preciosas: mulheres e homens do Centro de Teatro do Oprimido, SESC - Ceará, Carroça de Mamulengos, Caixa Cultural do Rio de Janeiro, Abaeté, WFD – Berlim, GTO-Bissau, Centro Cultural Brasil Guiné-Bissau, Grupo AMIZADE de São Domingos, Universidade Federal de Ouro Preto, GTO-Maputo, Centro Cultural Brasil Moçambique, Rádio Moçambique, Rede Globo, amigas e amigos. Claudia Simone, da equipe do CTO, começou como participante, se transformou em produtora e acabou compondo a equipe conosco.

A árvore das madalenas e seus frutos: o Laboratório Madalena é hoje um curso de extensão universitária em Minas Gerais; formação de dois núcleos Madalena no Ceará (Cariri e Fortaleza); formação de um núcleo Madalena em Santa Catarina com apoio do sindicato (Sintrafesc); participação na marcha mundial das mulheres em São Paulo; ocupação da Teia de Pontos de Cultura em Fortaleza; multiplicação em Portugal com o Núcleo Teatro do Oprimido do Porto; multiplicações planejadas para Alemanha e Índia. Um largo caminho de possibilidades se abre para o Laboratório Madalena – Teatro das Oprimidas.

*Alessandra Vannucci é diretora teatral. Juntas concebemos essa emocionante experiência.

**Curinga é a terminologia criada por Augusto Boal no Teatro de Arena de São Paulo, na década de 1960 para um criativo sistema de atuação onde atores e atrizes se alternavam pelos personagens. Em seguida, passou a utilizar o mesmo termo para identificar o praticante de seu Método - Teatro do Oprimido, que tinha a função de estimular o diálogo teatral nas sessões de Teatro-Fórum.

1 comment:

  1. Barbara, eu acho bom de mais este trabalho! leindo a suas palavras me lembro de mim mesma faz tempo, tirando os pratos de mesa, arrumando a casa pra outro, pidiendo ajuda...temos que mudar ao opresor mas tambem a nos mesmas oprimidas! o tira na cabeça!!! Entendendo que o nosso valor nao é (so)ser bonitas, nim ser servicial, nim ser boas na cocina...muito brigada a todas as mulheres que facem parte de esto! bjs

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