Friday, August 13, 2010

A Arte de Curingar (Português)

Curinga é a carta multifuncional do baralho. Em cada jogo, uma função específica.

Augusto Boal batizou os e as facilitadoras do Teatro do Oprimido (TO) de “Curinga”: artistas com função pedagógica; praticantes, estudiosos e pesquisadores de seu Método. Poder-se-ia definir Curinga como especialista em constante processo de aprendizagem. Alguém que deve conhecer o conjunto de técnicas que compõem a Árvore do Teatro do Oprimido, representação da estrutura pedagógica do Método, composta por ramificações coerentes e interdependentes, fruto de descobertas feitas a partir da necessidade de responder a demandas efetivas da realidade.

Exercer a função de Curinga exige conhecimento rigoroso dos fundamentos práticos e teóricos: éticos, políticos, pedagógicos, estéticos e filosóficos do Método, e, ao mesmo tempo, ter sensibilidade para as demandas da realidade e capacidade de re- inventar o conhecido, para atender às necessidades concretas de cada grupo.

Um ou uma Curinga deve ser capaz de entrar em cena e atuar, de ministrar oficinas e cursos teóricos e práticos; de organizar e coordenar grupos populares; de orientar a produção de espetáculos de Teatro-Fórum (da criação da imagem ao texto coletivo); de mediar diálogos teatrais em sessões de Fórum e de Teatro Legislativo, de estimular a efetivação de ações sociais concretas e continuadas e, claro, de sistematizar sua experiência para que sirva a outros praticantes e contribua para o desenvolvimento do Método.

O Teatro do Oprimido é um Método lúdico e pedagógico, um instrumento eficaz de comunicação e de busca de alternativas concretas para problemas reais, através de meios estéticos. Cria condições para que o oprimido se aproprie dos meios de produzir teatro e assim amplie suas possibilidades de expressão. Ao eliminar as barreiras entre palco e platéia, estabelece um diálogo ativo, democrático e propositivo.

Curinga é quem facilita este Diálogo, estabelecendo uma comunicação horizontal, que seja ao mesmo tempo investigativa e propositiva. Facilitar aqui não significa oferecer respostas ou apresentar caminhos, e sim ajudar na análise das alternativas, com perguntas e comparações instigadoras, que encorajem a expressão e garantam espaço para a diversidade de opiniões.

No Teatro do Oprimido, a função Curinga é diversa e complexa: da identificação à representação estética do conflito, até a discussão e viabilização das estratégias que possibilitem a transformação da realidade encenada.

Quem ocupa a função de Curinga deve auxiliar as pessoas a descobrirem suas potencialidades, a se conhecerem melhor, a expressarem suas idéias e emoções, a analisarem seus problemas e a buscarem alternativas próprias. Curinga não é quem detêm repostas, e sim quem formula perguntas que geram respostas e que provocam novas perguntas. Não se trata de perseguir a resposta perfeita, e sim de estimular as respostas possíveis que desenhem a realidade desejada, para torná-la palpável.

Para ocupar a função Curinga é necessário buscar incessantemente a especialização na diversidade, através de formação e de postura multidisciplinares, porque a Árvore do TO se alimenta dos conhecimentos humanos para promover ações concretas. Procurar saber de teatro, cultura, educação, psicologia, política, ecologia, economia, e do que mais for possível, associando saber a sensibilidade e bom senso, é atitude essencial.

O TO é largamente praticado no mundo inteiro, em línguas, culturas e geografias diversas, e está a serviço da universalização do saber e do bem comum, baseando-se no respeito às especificidades das identidades locais, e em radical oposição à uniformização que massifica.

Apesar de se esperar que seus praticantes sigam os mesmos fundamentos teóricos e práticos (éticos, pedagógicos, estéticos, filosóficos e políticos), sistematizados por Augusto Boal, o TO da Índia deve ser indiano, o de Moçambique, moçambicano, o da Palestina, palestino, o do Canadá, canadense, e o do Brasil, brasileiro. Enfim, em cada lugar estar identificado às especificidades daquele local.

A atenção rigorosa aos fundamentos do Método, garante uma identidade global que permite que o praticante da Índia se reconheça no Fórum feito em Moçambique. E o princípio de que a técnica deve estar a serviço das pessoas, considerando suas necessidades concretas e especificidades locais, exige e promove diversidade. O Teatro do Oprimido deve ser o mesmo em todos os lugares, sendo, ao mesmo tempo, específico em cada um deles.

Os Grupos de Teatro do Oprimido – GTO ́s – trabalham com temas variados, de violência doméstica, urbana e sexual à reforma agrária; de prevenção à AIDS a discriminação racial, social e de gênero; de diversidade sexual a direitos trabalhistas, entre outros. Temas de muitas vidas, de muitos lugares.

Então, como qualificar alguém para assumir essa função Curinga? Como garantir uma preparação que dê conta de tamanha complexidade?

Uma formação que, necessariamente, deve ser ininterrupta e de longo prazo, por não se restringir ao estudo teórico, depender da experimentação prática e se edificar no amadurecimento humano. Teatro do Oprimido só pode ser apropriado por quem compartilha generosamente seu saber e sua experiência. Método que só se aprende ensinando e que só se ensina estando aberto para aprender. Esse processo de formação só pode se dar ao longo do tempo.

Parafraseando Antônio Machado[1], Curinga é o/a caminhante que constrói o caminho ao caminhar. Essa caminhada começa, necessariamente, na multiplicação. O caminho é infinito. As chegadas, diversas, são as superações de realidades opressivas.

Mesmo tendo uma base sólida, fundamentada na Ética e na Solidariedade, o TO não é um Método estático ou concluído: se amplia a cada descoberta e se aprofunda a cada sistematização. Essa dinâmica é o principal desafio à formação de quem quer exercer a função de Curinga.

Um Método em constante movimento e desenvolvimento, por princípio, não pode ter especialistas formados. Seus praticantes devem ser pessoas em movimento, em estado de aprendizagem, conscientes que conhecimento é processo de vida e não acúmulo burocrático. Durante toda a vida, Augusto Boal esteve em movimento, encarando cada descoberta como referência para o recomeço.

No Teatro do Oprimido, a atuação prática alimenta a produção teórica que deve ser, ao mesmo tempo, seu fundamento e ponto de partida.

Augusto Boal iniciou a sistematização do Método do TO na década de 1970, no Brasil (Teatro Jornal) e seguiu descobrindo técnicas em seu período de exílio, na Argentina (Teatro Invisível), no Chile (Teatro Imagem), no Peru (Teatro- Fórum), na França (Arco-Íris do Desejo) e por onde mais passou até regressar ao Brasil em 1986. No Rio de Janeiro, onde fundou o Centro de Teatro do Oprimido, www.cto.org.br , com a equipe de Curingas, não parou (Teatro Legislativo) e seguiu até o final de sua vida com a pesquisa da Estética do Oprimido e a constante ampliação do arsenal de exercícios e jogos.

Ao longo dos 23 anos que foi diretor artístico do Centro de Teatro do Oprimido - CTO[2], Boal cuidou pessoalmente da formação e da atualização dos Curingas de sua equipe, através de Seminários Teóricos, Laboratórios Práticos e Centro de Estudos Gerais. Atividades para análise e produção de textos teóricos; avaliação do desenvolvimento dos projetos; revisão, experimentação e sistematização de exercícios, jogos e técnicas da Árvore do Teatro do Oprimido e de sua dramaturgia; e estudo de temas políticos e sociais. Curingas formados entre a aplicação prática em projetos sócio-culturais e a reflexão analítica em laboratórios e seminários. Qualificação forjada num processo contínuo de experimentação e produção teórica.

No Centro de Teatro do Oprimido, os e as Curingas construíram um caminho de formação a partir de grupos de TO onde iniciaram seus processos de multiplicação.

Claudete Felix, professora de português e literatura, atuava no grupo de animadores culturais, sob supervisão de Boal. Helen Sarapeck, bióloga, e Olivar Bendelak, engenheiro químico, integravam o grupo Arajuba na Moita. Geo Britto, sociólogo, colaborava com o grupo do sindicato dos bancários. Flávio Sanctum, pedagogo, foi integrante dos grupos GHOTA e Artemanha. Claudia Simone, psicopedagoga, iniciou sua experiência organizando o grupo Pirei na Cenna. E eu, Bárbara Santos, socióloga, no grupo Virando a Mesa, formado por professoras.

Entre Curingas associados: Cláudio Rocha, arte-educador, que começou sua experiência no grupo Pressão no Juízo, em Recife, Yara Toscano, psicóloga, e Kelly di Bertoli, atriz profissional, através de projetos do CTO em São Paulo.

Mais recentemente, integrando a equipe, Monique Rodrigues, do grupo Panela de Opressão, e Alessandro Conceição, do grupo Pirei na Cenna.

A multiplicação pode se iniciar de forma pontual, dentro do próprio grupo e se ampliar gradualmente através de oficinas e cursos; organização e coordenação de grupos comunitários; produção de espetáculos; mediação de diálogos teatrais; estímulo a ações sociais concretas e continuadas, e produção de sistematização das experiências práticas.

Na atual estrutura do CTO, existem Praticantes do Método atuando como Curinga, como Curinga-Assistente ou como Curinga-Comunitário.

Curinga-Assistente é um/a praticante que assume responsabilidades específicas nas atividades práticas, apesar de ainda não ter autonomia para conduzir o processo de trabalho como um todo. Essa experiência funciona como estágio supervisionado, sendo estratégia de formação.

Curinga-Comunitário é um/a integrante do grupo de TO que se destaca como coordenador interno, que domina o tema específico do espetáculo e tem condições de ministrar exercícios e jogos, de orientar ensaios e de facilitar diálogos teatrais, exercitando o Ato de Curingar no âmbito particular de seu coletivo. Esse trabalho comunitário, a princípio restrito à especificidade do grupo, pode estimular a ampliação desta atuação para outras áreas temáticas. Uma estratégia de formação que garante autonomia aos grupos comunitários.

Curingar significa mediar o diálogo entre palco e platéia nas sessões de Teatro- Fórum e o debate nas sessões de Teatro Legislativo, promover o diálogo em qualquer atividade do Teatro do Oprimido. Curingar significa estimular o espectador a sair da condição de consumidor do produto cultural e a assumir o lugar de produtor de cultura e de conhecimento, o lugar de cidadão: agente de transformação da realidade. O Ato de Curingar, em si, não transforma um Praticante de Teatro do Oprimido em Curinga, mas é exercício essencial para sua formação.

A intensa difusão do Teatro do Oprimido no Brasil provocou a necessidade de se criar programas para a qualificação de seus Praticantes, a fim de garantir o acesso aos fundamentos do Método e o exercício adequado de sua prática. Esses programas foram pedagogicamente estruturados ao longo dos últimos 12 anos, pela equipe do CTO, não para formar Curingas, mas para oferecer uma base sólida a todos e todas que quisessem iniciar a jornada como Praticantes do Método.

Para exercer a função de Curinga, as atividades de multiplicação são essenciais, por isso o desenvolvimento destas habilidades tem sido o núcleo dos programas de qualificação do CTO, que beneficiam ativistas de grupos culturais, movimentos sociais e instituições sócio-culturais, que utilizam o TO em sua atuação comunitária, para dinamizá-la, diversificá-la e ampliá-la.

Os atuais programas continuados de formação de Praticantes do Método coordenados pelo CTO não se destacam apenas por suas dimensões territoriais – Brasil, Moçambique, Guiné-Bissau, com desdobramentos em Angola e repercussão no Senegal – mas, especialmente, pela inovação e consistência de sua estrutura pedagógica.

Dos cerca de 700 Praticantes de Teatro do Oprimido que foram ou estão em processo de qualificação formados/as pelo CTO, 2006-2010[3], certamente, muitos despontarão como participantes de uma nova geração de Curingas, influenciada por culturas, identidades, experiências, saberes e personalidades diversas. Uma geração que seguirá o sonho de Boal de que todo mundo possa exercer o direito humano fundamental de fazer teatro e de se expressar através de meios estéticos.

A experiência acumulada nesse processo histórico aponta para a necessidade de se avançar na sistematização de programas para a qualificação de Curingas. Programas que se beneficiem das conquistas alcançadas, busquem a superação das insuficiências identificadas e avancem nas estratégias de acompanhamento dos projetos desenvolvidos pelos formandos e de estímulo à atuação em rede, à produção teórica e à comunicação internacional.

O Teatro do Oprimido ainda não completou quatro décadas de existência, mesmo assim, está presente nos cinco continentes, sendo utilizado por centenas de praticantes, beneficiando milhares de pessoas. As práticas são diversas, em dimensões, áreas de atuação, estilos, metas e resultados.

A impressionante difusão do Método cria a necessidade de fortalecimento dos fundamentos e princípios básicos da Árvore do Teatro do Oprimido e a sistematização de sua estrutura pedagógica, a fim de garantir sua autenticidade, seja lá onde estiver sendo aplicado.

Sendo Curinga ou estando em processo, Praticantes de Teatro do Oprimido devem se comprometer com a essência humanista, pedagógica e democrática do Método. A ética e a solidariedade como fundamentos e guias. A multiplicação e a organização como estratégias. A promoção de ações sociais continuadas e concretas, para a transformação de realidades opressivas, como meta.


[1] Poeta espanhol.

[2] Av. Mem de Sá, 31 – Lapa – RJ / RJ - Brasil CEP: 20.230-150 www.cto.com.br 55 21 2232-5826

[3] Os projetos desenvolvidos neste período contaram com o suporte do governo federal, através do Ministério da Educação, do Ministério da Saúde e do Ministério da Cultura, este último o maior parceito atual da instituição.

5 comments:

  1. Que maravilha de artigo, Bárbara! Esclarecedor!! Que bom!

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  2. Bárbara, você nem imagina como me alimento aqui no seu Blog!! Adoro os posts e sempre leio! Colabora muitíssimo com meus trabalhos, viu? Bjs

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  3. Querida Meire, que bom saber que você também passa por aqui de vez em quando. Eu também. A partir dos diversos seminários teóricos (Raízes e Asas) tenho aprofundado análises e reformulado muita coisa. Em breve, teremos novidades por aqui... beijo grande e bom trabaho!

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  4. Parabéns pela matéria Bárbara Santos!!! Espetáculo.

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  5. Oi, Bárbara! Deixo aqui o registro da minha passagem pelo seu blog e da relevância de ter lido este artigo, mesmo 13 anos depois de você ter escrito. Estou citando na minha dissertação. Abraço.

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