Monday, November 30, 2009

Teatro do Oprimido para Empresas Privadas: Impossibilidades (Português)

Partimos do princípio que o Teatro do Oprimido é do/a oprimido/a e deve ser feito pelo/a oprimido/a e para o/a oprimido/a. E não deve, em hipótese alguma, servir, beneficiar ou apoiar ao sistema que oprime, explora, controla e manipula, visando à acumulação para poucos à custa da espoliação de muitos/as.


O Teatro do Oprimido deve ser praticado para humanizar a humanidade; para a revolta do/a oprimido/a e não para sua adaptação; para apropriação dos meios de produção cultural e não para o aprisionamento ao consumo; para revelar a estrutura do conflito e não para pacificá-lo na ignorância; para estimular a ação que exige e constrói a mudança e não a espera do favor; para ajudar a abrir os olhos e não para cegá-los com subterfúgios camuflados de solução.

O Teatro do Oprimido deve servir para uma atuação solidária, ética e internacional contra a miséria, a injustiça, a opressão, a discriminação, a depredação e a privatização de recursos naturais, sociais e culturais, o cerceamento geográfico e a exploração do trabalho. Uma atuação solidária, ética e internacional pela justiça social, distribuição da renda, igualdade de oportunidades, respeito às diversidades, liberdade de circulação, sustentabilidade e equidade de acesso a recursos naturais, sociais e culturais e, pela solidariedade e felicidade de todos/as.

O Método criado pelo teatrólogo Augusto Boal está fundamentado na Estética do Oprimido, que se concentra no combate à invasão estética dos cérebros, à dominação de idéias e de percepções e à imposição autoritária de concepções pré-estabelecidas de belo, de certo e de desejável. Combate às estratégias perpetradas pelo sistema opressor que usa meios estéticos – som, imagem e palavra – para influenciar e convencer os/as oprimidos/as de que são incapazes de criar, de participar e, especialmente, de decidir. A Estética do Oprimido estimula a produção criativa e crítica de cultura e de conhecimento e é exercício pleno de liberdade.

Por isso, para ser praticado adequadamente o TO precisa que os participantes usufruam de plena liberdade de escolha: para participar, eleger os temas de seu interesse e definir metas e estratégias de ação, dentro dos limites de suas possibilidades. O grupo precisa se apropriar dos meios de produção para expressar desejos e necessidades de transformação da realidade que o oprime, estando ciente de desafios e riscos para torná-los público e determinado a enfrentá-los.

Como se pode verificar, o TO tem fundamentos inconciliáveis com a concentração de riquezas para uma minoria, com a espoliação da classe trabalhadora, com uma educação bancária, com a adaptação acrítica, com o enquadramento forçado a regras pré-estabelecidas e com a manutenção do status quo. O TO é uma Arte Marcial de combate aberto aos princípios que alicerçam o sistema de exploração.

A disseminação, manutenção e desenvolvimento da ideologia, sobre a qual este sistema opressor está baseado, ficam a cargo de diversas instituições sociais, tanto públicas quanto privadas, como as de ensino e de pesquisa, as de fiscalização, as de manutenção da ordem e de proteção à propriedade privada, as de comunicação, as de saúde, as de segregação, entre outras.

Muitas vezes, como praticantes de TO, atuamos nessas instituições com a convicção de estarmos lutando pela transformação da realidade quando, na verdade, estamos a serviço da manutenção da ordem estabelecida. Podemos ter a visão ofuscada e a percepção prejudicada por avanços ilusórios que camuflam as conseqüências práticas de ratificação da legitimidade da instituição em questão.

Num presídio, por exemplo, o TO só pode cumprir seus objetivos quando presos, presas e guardas têm liberdade de discutir qualquer tema dentro da oficina. Claro que esta condição de liberdade para o diálogo também dependerá da habilidade, experiência e disposição do/a Curinga em abordar certos temas, no caso destes representarem questões éticas, que no ambiente prisional é relativamente freqüente. É necessário que haja liberdade para desenvolvimento do processo estético, mesmo que o produto artístico que daí resulte, caso resulte, não possa ser compartilhado com o público, por limitações internas ou externas ao grupo. O processo estético deve significar uma experiência de liberdade e de apropriação do meio de produção.

O presídio é uma instituição a serviço do sistema opressor, uma instituição estratégica. Se o/a Curinga não estiver ciente das contradições internas e externas desta atuação corre o risco de ver seu trabalho enquadrado apenas como entretenimento sem espaço real de crítica ou questionamento, transformado em teatro didático elucidativo das regras vigentes e facilitador da adaptação. Dentro do sistema penitenciário só é possível avançar no sentido real do Teatro do Oprimido quando se consegue trabalhar nos vácuos de contradição do próprio sistema, onde há espaço para o insólito, o inesperado e, em alguma medida, o transformador.

O mesmo se poderia dizer para o trabalho com o TO nas escolas, que para ser adequado, precisa que a participação não seja obrigatória e o projeto não vise à adaptação dos/as estudantes ao status quo pedagógico da instituição. É fundamental que exista a possibilidade de questionamento das relações de poder para que o trabalho com o TO não seja cooptado, domesticado ou transformado em teatro didático. O TO não é para ensinar o que seja considerado “certo” por uma elite política, econômica, social, cultural ou intelectual e sim para questionar a realidade, duvidar do certo, estimular reflexões e construir alternativas.

Muitos praticantes de TO desenvolvem ações em hospitais psiquiátricos, outro setor social historicamente opressor, com função estratégica de manutenção da ordem, através da exclusão dos diferentes. Nesse ambiente é ainda mais difícil resguardar a liberdade de participação de usuários desses serviços e, ao mesmo tempo, o respeito a suas escolhas temáticas, além de conquistar espaços que garantam o caráter lúdico do trabalho sem deixá-lo cair no puro entretenimento ocupacional.

Apesar de serem instituições que servem à manutenção do sistema opressor, oferecem espaços de contradição, onde o trabalho com o TO pode criar brechas de diálogo e caminhos de transformação. Entretanto, a falta de visão crítica do contexto mais geral no qual esse trabalho esteja inserido pode facilitar a queda na armadilha institucional, que coopta e incorpora, transformando-o em mais uma estratégia de adaptação e manutenção das estruturas de poder vigentes.

O desenvolvimento de um projeto de TO feito de forma adequada, com base nos princípios éticos, estéticos, pedagógicos, políticos e filosóficos do Método, invariavelmente, levará ao questionamento da própria existência da instituição. Isso porque se baseará na perspectiva de quem se sente oprimido pela estrutura e/ou pelas relações desenvolvidas dentro dela. A perspectiva de quem deseja e necessita a transformação desta estrutura tende ao seu questionamento como eixo central.

E nas empresas privadas, onde as relações são mediadas pela dependência econômica, influenciadas fortemente pela luta cotidiana pela sobrevivência, do lado dos trabalhadores, e pelo interesse explícito e prioritário de manutenção e ampliação do lucro, do lado dos empresários, seria possível desenvolver uma ação com o TO, conciliando seus fundamentos éticos com os interesses do capitalista contratante?

Num caso desses: Quem requisita e contrata o trabalho? Qual a motivação desta contratação? Quem define metas e objetivos deste trabalho? Quem define o tema a ser abordado? Qual o público a ser beneficiado? Público beneficiado ou público-alvo? Qual a efetiva participação deste público no processo produtivo? Qual a liberdade de participação deste público? Qual a real possibilidade deste público em se recusar a participar, mesmo não sendo objetivamente obrigado? Qual nível de constrangimento trabalhista influencia a tomada de decisão desse público? Qual nível de controle institucional é percebido pelo público sobre suas ações e colocações? As colocações do público representam suas reflexões e necessidades ou buscam corresponder às expectativas do contratante e a conseqüente manutenção do posto de trabalho?

A motivação do capitalista é o lucro, nada mais compreensível. Quando se preocupa com a saúde e a ampliação do nível de escolaridade do trabalhador, a diminuição do machismo, do preconceito e das tensões no ambiente de trabalho, a despoluição no processo produtivo, a produção orgânica ou a redução do aquecimento global, o capitalista está focado no crescimento do lucro. Seja através do aumento da produtividade de trabalhadores saudáveis, bem educados e felizes ou da ampliação do mercado, atraindo consumidores conscientes e dispostos a pagar mais por produções socialmente responsáveis e ecologicamente sustentáveis.

A motivação do TO é a transformação de realidades opressivas, na perspectiva de quem se sente oprimido/a por elas. A tarefa do TO é revelar a estrutura do conflito e facilitar o caminho de análise a partir do caso particular até o sistema social, econômico e cultural no qual está inserido. De forma a promover a compreensão das causas e conseqüências do tal fenômeno, que num primeiro plano parecia tão particular e específico, e a estimular a busca coletiva de alternativas de solução.

Nessa perspectiva, o espaço de atuação do Teatro do Oprimido numa empresa privada seria na abordagem das contradições inerentes à relação capital trabalho. Mas qual capitalista em sã consciência investiria recursos financeiros nessa dor de cabeça?

Fazer espetáculos para conscientizar sobre a necessidade de prevenção a acidente de trabalho, a importância de relações respeitosas no ambiente de trabalho, o uso adequado de ferramentas e recursos, entre outros temas bem intencionados, é realmente louvável. Mas chamar isso de Teatro do Oprimido é absurdo. Nesse caso, utilizar técnicas como Teatro-didático, Teatro-empresa, Teatro-educação ou criar algum tipo de Teatro-mercadoria é mais adequado, justo e ético.

Ao longo de seus 23 anos de existência, o Centro de Teatro do Oprimido, sob direção de Augusto Boal, recebeu financiamentos, através de editais públicos, da Petrobras – a empresa estatal de Petróleo; da Caixa Cultural e do Centro Cultural do Banco do Brasil – faces culturais de dois bancos estatais; e do BNDES – banco nacional de desenvolvimento econômico e social; que são os maiores investidores em cultura no Brasil. Em nenhum desses casos, os recursos foram utilizados para atuar dentro destas empresas, mesmo sendo estatais, com seus respectivos funcionários. Os projetos desenvolvidos com esses financiamentos serviram à formação de Multiplicadores dentro de organizações da sociedade civil e ao desenvolvimento de grupos comprometidos com a emancipação comunitária.

Por outro lado, a equipe do Centro de Teatro do Oprimido já desenvolveu projetos com a Associação de Engenheiros da Petrobrás questionando as propostas de privatização de sua direção, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Além de diversas atuações com sindicatos dos bancários no Rio e em Minas Gerais.

Como deixa claro Augusto Boal na página 253 de seu último livro, Estética do Oprimido, lançado em setembro de 2009, no Brasil, sobre a busca de parcerias:

"... trabalha(mos) com camponeses, jamais para latifundiários. Com operários, jamais para seus patrões. Com oprimidos, jamais para opressores.... Alguns grupos desonestos usam pedaços amputados ao Método para, obedientes, ajudar opressores: traição."

Para capitalistas-mecenas, caso existam, que tenham desejo em investir no Teatro do Oprimido, temos muitos projetos comprometidos com o desenvolvimento comunitário para recomendar, onde são os/as oprimidos/as que decidem o que, para que e como fazer.

Por mais que sejam vitais, os financiamentos não podem descaracterizar a essência revolucionária do nosso trabalho, que busca emancipar e não domesticar.

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