Wednesday, November 24, 2010

Teatro do Oprimido: é possível quando cercado de verdades?

A convite de meu amigo Antonio Masegosa, estou mais uma vez em Barcelona. Adoro a cidade, a comida, os vinhos, a visão do mar... Um prazer!

A proposta: um final de semana dedicado à Estética do Oprimido, curso aberto, e um segundo momento exclusivo para a qualificação da equipe de Multiplicadores de Pallapupas – originalmente, palhaços de hospital – organização onde Masegosa atua na direção artística. Existe uma equipe de facilitadores que utiliza Teatro do Oprimido em unidades de saúde mental: com crianças, adolescentes, adultos, familiares. A formação para os e as facilitadoras está sendo preparada através de visitas de acompanhamento. Vou ao local onde trabalham para ter uma idéia do que e como fazem.

Assim se pode entender melhor as questões, aflições e alternativas de quem faz o trabalho de campo. Tentar ver através de seus olhos, escutar por seus ouvidos, perceber o sentido das palavras que dizem e do planejamento que fazem. Se interar de seu contexto de atuação.

Primeira visita: moderno hospital pediátrico, setor psiquiátrico. Instalações de alto nível, equipe qualificada... tecnicamente, Perfeito!

Um café com a dupla que faz o trabalho para uma breve contextualização do trabalho: grupo formado por crianças de até 12 anos, em tratamento psiquiátrico, internadas por períodos que podem variar de uma semana até oito meses, para diagnóstico psiquiátrico, pesquisa de medicação adequada a cada caso, tratamento intensivo para os casos graves. Além da medicação psiquiátrica, atividades lúdicas na área de psicologia. Pallapupas atua no hospital duas vezes por semana: uma com crianças, outra com adolescentes.

Dificuldades: alto índice de rotatividade, muitas vezes não se tem o mesmo grupo em dois encontros seguidos. Alternativa: trabalhar cada encontro como um programa completo em si: começo, meio e fim.

Saímos do café... pegamos um elevador para descer. Saímos do prédio onde estávamos. Atravessamos um corredor. Entramos em outro prédio. Nos anunciamos num interfone. Uma enfermeira aparece para nos resgatar. Subimos outro elevador. Entramos num corredor de muitas salas. Como um jogo de labirinto... chegamos à sala onde acontecerá a transmissão.

Transmissão é o termo que usam para a conversa entre enfermeira e dupla de facilitadores. Ela descreve o grupo que eles encontrarão, dando detalhes sobre o tratamento e sobre o comportamento emocional até aquele momento.

Começa falando de M, 12 anos. Ela tem um DCT associado a um TDF, por isso passa por um tratamento tipo TMC. A conversa é em código. Parece que a menina descrita tem um distúrbio de não sei o quê associado a um trauma comportamental de outra coisa que não consigo perceber, e por isso participa de uma terapia multi-alguma coisa. Depois falam de O, 8 anos. Com depressão profunda associada a um TRS que é agravado por um autismo leve. Em seguida, descreve P, 8 anos, depressão leve, hiperatividade associada a mais duas siglas. Segue falando... uma está revoltada, outro não fala há dois dias, e... Siglas, tratamentos, comportamentos.

A enfermeira é simpática, atenciosa, delicada... Entretanto, quando descreve as crianças, parece perder a dimensão de humanidade. Eu não conseguia enxergar nenhuma criança por detrás da conversa. Até que perguntei sobre pais e mães, se fazem tratamento também. Ao que ela responde: Deveriam, mas não fazem. O hospital é para crianças.

Saio da sala de transmissão sufocada. Quero gritar, chorar... parece uma calamidade. Se crianças de 8 anos podem ser diagnosticadas como depressivas profundas, temos que nos perguntar urgentemente em que tipo de sociedade adoecida estamos vivendo. Tanto distúrbio de comportamento, tanto trauma... quem precisa mesmo de tratamento? Até onde se pode ir com tratamento de crianças sem envolvimento de seus pais?

Chegamos à sala de oficina. Uma espécie de aquário com largas janelas de vidro. Tento esquecer todas as siglas para enxergar as crianças. Entramos. Sou apresentada e as crianças, como quaisquer outras, ficam curiosas sobre minha origem. A facilitadora pergunta: De onde acham que ela é? China, Índia, África, Estados Unidos, Madrid... O menino diagnosticado com autismo mais profundo me olha nos olhos, dentro dos olhos, e da seus palpites em voz baixa. Depois todo mundo quer saber qual a origem dos demais participantes. Ficamos por quase 15 minutos concentrados no tema da origem de cada um e cada uma.

Iniciamos o programa de exercícios e jogos. Um pouco de desconcentração aqui e acolá... Começamos. O primeiro jogo incluiu um pouco de frustração que parece bem manejada pelos facilitadores. O jogo seguinte propõe que um seja escultor e outro massa de modelar. Um modela o outro, fazendo uma escultura. Depois, de olhos fechados, entre muitas esculturas, tem que encontrar a sua. As crianças ficam fascinadas. Uma menina diz, quero ser o barro! Não quer ser escultora? Não, quero ser apenas barro. Alguns querem seguir jogando mais um pouco, mas é preciso seguir para o jogo seguinte.

Outro jogo, onde formamos pequenos grupos e criamos imagens que devem ser analisadas pelos demais. O que vêem aqui? Cada um descreve o que acha. Numa imagem falam de família: pai, mãe e filho. O menino que está na imagem vive numa espécie de orfanato. Parece absolutamente feliz de estar na tal imagem como filho. No final, as imagens ganham vida e podem entrar em ação. O jogo também se encerra. Chega o momento de se despedir de um menino que encerrou seu tratamento e vai embora. Acaba a sessão.

Me dou conta do poder das siglas e das verdades médicas. Mesmo quando as crianças solicitavam seguir com a mesma atividade, os facilitadores, de alguma forma, se sentiam obrigados a mudar de atividade. Posso entender, pois uma das idéias pré-fixadas sobre crianças hiperativas é que não podem se concentrar e por isso é necessário mudar de atividade todo o tempo.

Quando a menina M, diagnosticada com distúrbio de comportamento, com uma agressividade-perigosa (essa menina iniciou pequenos incêndios na comunidade onde reside), disse que queria ser o barro e não o escultor, ou seja, queria ser modelada e não modelar, faltou espaço de investigação. Ela oferecia uma oportunidade excepcional de diálogo, de percepção sobre o que poderia significar para ela a sensação de ser barro, de estar apenas como massa de modelar. Oportunidade não aproveitada.

O mesmo me pareceu ocorrer no momento de análise das imagens. Havia uma imagem de família: pai, mãe, filho. Um menino feliz na imagem. Se poderia ter investigado quais os possíveis movimentos da família: de onde estariam vindo, para onde iriam, o que gostariam de fazer, e etc.

Entretanto, naquela sala, com crianças como quaisquer outras em qualquer outro lugar, estávamos rodeados de siglas aprisionadoras, de verdades engessadoras que não permitiam o fluir da liberdade do espaço teatral.

Mesmo se tratando de um espaço transitório, a oficina de teatro deve ter como marca essencial a liberdade criativa, de tempo e de espaço: ali se pode ser o que quiser e estar onde se possa imaginar. Não há limites para o vôo imaginário, para os saltos criativos ou para o tempo da ficção. A liberdade do teatro não pode ser enquadrada na estrutura de diagnósticos precisos.

Longe de mim duvidar de competências médicas, como especialistas em suas áreas devem saber o que estão fazendo. Torço que sim! Entretanto, quando nos propomos a abrir espaços de liberdade, devemos assegurar os requisitos mínimos para sua implantação, entre os quais, o espaço para a dúvida. Não me refiro à duvida sobre competências alheias, mas a dúvida sobre verdades herméticas. Criar espaço para a possibilidade do improvável, para a existência do inusitado, para a descoberta de potencialidades ainda não conhecidas. Espaço onde possamos nos surpreender.

O menino autista que dificilmente faz contato com outras pessoas, na sessão de teatro pode se concentrar profundamente numa cena criada, que aconteça num espaço fictício. A menina cheia de iniciativas consideradas socialmente “negativas” pode se dar ao direito de ser apenas barro, de ser modelada. O menino hiperativo, que não se concentra em nada, que precisa de muitas atividades diferentes, pode querer seguir num mesmo jogo, por conta de alguma coisa surpreendente que descobriu e que nós não nos demos conta.

A oficina de teatro não está limitada pelas paredes da sala. Por isso, também não pode estar aprisionada por diagnósticos incontestáveis. É preciso espaço para mover-se por improbabilidades. Ser humano é ser teatro. No exercício de criação de uma imagem do real, podemos expressar o que não conseguimos em nossa realidade, podemos inclusive entrar em contato com o real do qual tanto somos excluídos. Muito para pensar...

Bárbara Santos

Barcelona, 23 / 11 / 10

7 comments:

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  2. Bárbara, eu acho mesmo que nos acontece o preconceito, mesmo como educadores pensamos antes de ver, antes de escutar, antes de conhecer. Achamos que ja sabemos o que as crianças precisam antes de perguntar pra elas. Temos que escutar mas do que falamos. Bjs
    Sabrina

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  3. Cara Bárbara, nossa, que linda voce e seu prática, que você sabe, é a minha paixão: teatroe saúde mental. Enfim, eu dizia muito aos meus estagiários: não há teoria que dê conta da vida de sujeitos.....a vida das pessoas é maior que qualquer estudo ou dito. Mesmo na área da saúde mental não são todos que concordom com nomenclaturas, estas rotulações são historicamente formas de exclusão que eu sei que não se adequa ao Teatro do Oprimido, que é para todos. Eu amo Barcelona, é lindo...abraça essas crianças por mim. Suerte.

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  4. Querida Bárbara,
    Leo acerca de esta experiencia y me invaden imagenes en otros lugares, la cárcel, la escuela, el barrio... porque tenemos tan internalizadas las celdas mentales que los preconceptos de tan repetitivos y cotidianos han sido naturalizados y así adoptados dentro nuestro. Hay que seguir despertando a una misma y a todas! Carolina

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  5. Com certeza o Teatro está em tudo, mais fazer teatro não é necessariamente conhecer tudo, mais saber o que se quer conhecer.

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